sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

III. (2018)

não sei bem como cheguei até aqui. nem o que me trouxe. se todo o vento guardado nos bolsos. se a dormência sentida nas mãos. ou qualquer memória do teu tempo. onde eras a sombra e o corpo. a luz. e o toque. enquanto andava. não carreguei nada comigo. nem ar cabia na minha camisola. nem pó. me sobrou sobre os ombros e nos cabelos. todos os caminhos eram lentos. alguns escorregadios. outros densos ou menos óbvios. e por entre flores e árvores. os passos eram curtos. e a medo. por vezes. entrava pelo nevoeiro a dentro. de peito feito. e nele. tremia. como poucos homens tremem de si. mesmos. cerrava os punhos. e eram falsos. os dedos a fazer força uns nos outros. cerrava as mãos. e eram falsos. os dedos que estalavam. e me denunciavam. a presença. e na vinda. quase que escapava a todo aquele momento. a todo aquele lugar. sem mar. sem vento. sem morte. sem cheiro ou sal. mas na volta. era trapalhão no gesto. os sapatos rangiam sobre a terra. a terra. encolhia com a água. os sapatos. e por cada passo. dado. um passo. menos largo. e a vida ia encurtando. a vista. e a paisagem ia encolhendo o horizonte. e das noites mais curtas. fiz dia. com a tua lembrança. e dos dias mais longos. dormi. 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

II. (2018)

<desajustado> 
é a mínima palavra que se pode dizer em relação a mim. tal como um passo falha o chão. tropeça. e faz cair o corpo. eu sou a falha e não o passo falhado. aquele vazio de chão que faltou cumprir. ou o pequeno pormenor do gesto. que o pé tomou para não encontrar a razoabilidade do equilíbrio. 

em determinados dias cinzentos. sou o quadrado branco. na face vermelha do cubo de kubrick. ou aquela volta insistente que teimamos dar. onde as peças fazem resistência umas nas outras. e estalam. e resmungam com os dedos. para nunca encontrarmos a solução para fazer a linha. ou a cor toda daquela face. (raio do cubo!)

ou até mesmo. a onda do mar. que falha a terra. e se desfaz em espuma até aos pés. tanto que a onda era para ser. aquele destino fantástico de se enrolar. toda sobre aquela massa de água revolta. e acabar. por se desmoronar contra a terra. até se espalhar pelo vento. em vapor. destemido pelo ar. cruzando-se com os raios de sol. fazendo um arco-iris. (foda-se, isto na minha cabeça é uma imagem do caraças!)


tal como a inutilidade de ter. fósforos. e nada ter para acender. tal como amar quem apenas nos maltrata a carne e nos come os sonhos. tal como ler um livro e não saber no fim. se a personagem morre ou permanece estática e presa aquele papel. tal como ter. vida e vontade num corpo. deitado numa cama. sem dela se poder levantar. tal como. haver pássaros no ar e lugar algum para pousar. matar a fome. e descansar. tal como todo o silêncio entre cada um dos batimentos do coração. tal como ter bolsos e nada ter para neles guardar. e numa casa às escuras. eu sou. a folha dobrada com uma nota escrita. a fazer de lembrete. <não esquecer de pagar a luz> 


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

I. (2018)

.eu sabia onde te encontrar em qualquer multidão. se toda gente estivesse vestida de negro. tu terias mais brilho no opaco das tuas roupas. se estivesse toda gente apressada. tu estarias de passo lento e demorado com a luz a esbater-se no teu cabelo. se estivesse tudo à procura de alguém. tu estarias à espera de mãos cruzadas e de pele fria. é assim. que o tempo se prolonga entre nós e se encolhe em cada corpo que encontra na multidão e se estende e estica até à escuridão daquele perímetro de gente. e volta. para te encontrar a balançar sobre o destino partido. a dançar com outros braços. a rir com os olhos noutros olhos. e nesse momento. mais ninguém seria testemunha de qualquer ausência. senão a minha. senão. eu.

.assim. todos os dias escrevo uma carta para te entregar. e em todas escrevo na candura do papel. que vou para longe de ti. ver o mar. e em todas as vezes. espero que esteja de ondas enroladas como os braços de um gigante de coração partido. a tentar salvar um império de náufragos. e o que resta do tempo. o mesmo que não sobra para esperar por ti. a vida é curta para isso. é longa para tudo o resto.

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